A ideia já tinha algum tempo, mas só agora viu a luz do dia. Mamute é uma nova revista de não-ficção literária, lançada pelo alumnus Gonçalo Mira, que se licenciou pela FLUL em Línguas, Literaturas e Culturas, em 2009.
Numa entrevista com o editor da revista, folheamos este novo projecto, que quer contar histórias “para informar, para pensar o mundo e os temas da actualidade”.
Entrevista: Tiago Artilheiro (FLUL-DREI, Núcleo de Alumni e Mecenato) | Fotografia: Direitos Reservados
Para este início de conversa podemos chamar Michael Herr. Foi ao ler uma das obras do autor que lhe surge a ideia desta revista. Mas no meio de tudo isto há um despedimento, uma herança e uma vontade já com alguns anos.
Gonçalo Mira (GM): Criar uma revista era uma ideia que já tinha há muitos anos, mas nunca tinha passado de um estado platónico. Assumo-me como analfabeto financeiro e a ideia de pedir empréstimos ou procurar apoios financeiros sempre me pareceu assustadora. No mundo da cultura e das artes fala-se pouco de dinheiro, mas eu gosto de frisar que este projecto só existe porque eu tive o dinheiro para me sentir confortável no risco. A herança era pequena e se o número um da Mamute tivesse corrido mal, podia não haver número dois. O facto de me ter despedido do emprego onde estava colocou ainda mais pressão sobre o projecto, mas a verdade é que não conseguiria fazê-lo de outra forma.
A revista Mamute é o quê exactamente? Como a descreve?
GM: É uma revista independente, trimestral, dedicada exclusivamente aos ensaios autobiográficos. Os anglo-saxónicos têm um termo muito específico para o género que procuro, o "memoir", que em Portugal não tem uma tradução ideal. Queremos contar histórias que também sirvam para informar, para pensar o mundo e os temas da actualidade. Esta vontade, contudo, não é forçada aos autores. Acredito que o ensaio autobiográfico tem este pendor natural, de falar de temas relevantes para entender o mundo e a sociedade.
No editorial do primeiro número refere que o "memoir" tem "pouca expressão em Portugal".
GM: Tem pouca expressão porque não há espaço para esse tipo de textos. A nossa imprensa está assoberbada pela proliferação de “crónicas” e “opinião” e, dentro desses géneros, interessa muito mais o nome do autor do que o conteúdo. Alguns desses textos que vão aparecendo na imprensa poderiam dar um bom "memoir", trabalhados com mais tempo e mais espaço, mas não há quem os publique. Ou não havia. Espero que a Mamute possa acolher alguns dos autores que se querem aventurar neste género e se influenciarmos outras publicações a darem espaço a este tipo de textos, melhor ainda.
As redes sociais podem ter ocupado algum desse espaço de escrita do "memoir", onde a vida se conta online e em frames.
GM: Sim, as redes sociais acabam por preencher esse espaço, mas a sua lógica do imediatismo e do consumo rápido são inimigas do texto longo, que é o que nós queremos publicar. Publicar numa revista, em papel, ainda é especial e não acredito que as redes sociais nos roubem autores, no sentido de esses preferirem publicar os seus pequenos textos nas redes sociais.
O ensaio autobiográfico tem ganho destaque em alguns países. É isso que também procura que aconteça em Portugal?
GM: O que procuro, acima de tudo, é que a Mamute seja uma revista de qualidade, que as pessoas fiquem ansiosas pelo próximo número e pelas histórias que vai trazer, e que continue a vender bem. Se tudo isto acontecer, é porque há espaço para o ensaio autobiográfico e há interesse dos leitores. Se outras publicações nos seguirem as pisadas, melhor.
Temos o primeiro número já publicado, com uma tiragem de 500 exemplares. Como é que o apresenta?
GM: O primeiro número da Mamute tem cinco ensaios autobiográficos muito diferentes entre si, não só nos temas que abordam, mas também na escrita dos autores. O Nuno Catarino escreve sobre a experiência de usar bicicleta em Lisboa como principal meio de transporte; a Cláudia Lucas Chéu escreve sobre sexualidade, a descoberta e as primeiras experiências, guiadas pelas leituras eróticas; o colectivo Seara conta a história do Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara, o trabalho que lá fizeram e o despejo em plena pandemia; o João Pedro Azul escreve sobre o pai, a demência que o afectou e a posterior morte; e o João Sousa Cardoso traz um diário de viagem, ao longo do rio Mississippi, com paragens em pontos fulcrais da história da escravatura negra. É isto que continuaremos a fazer: juntar temas e vozes diferentes entre si, falar de temas relevantes, procurar a empatia nos leitores.
E juntar esses temas e vozes não será, apenas, um processo de selecção.
GM: A Mamute não escolhe autores, escolhe textos. No nosso website temos instruções de submissão, para que qualquer pessoa possa enviar os seus textos. Há, claro, alguns autores que eu convido, mas o convite não é uma garantia de publicação. É uma tarefa que me custa, dizer “não”, sobretudo depois de ter feito o convite, mas já aconteceu. No número um eram todos portugueses, mas no número dois já não será assim.
A colaboração de autores estrangeiros é uma hipótese? Através de tradução ou na língua original?
GM: Trazer autores de línguas estrangeiras não está na nossa lista de prioridades. A acontecer, será por recomendação de um dos nossos autores, a quem peço sempre sugestões de outros autores. Porém, a ideia é publicar sempre textos inéditos, porque não vamos investir em direitos de tradução.
O facto de não existir um tema em cada número relaciona-se com a capacidade de assim conseguirem atingir mais público leitor.
GM: Esse é um dos motivos, sim. Pegando no exemplo do número um, quero que o público das bicicletas leia sobre os outros temas, que o público da Seara leia sobre os outros temas. Se o número um fosse só sobre mobilidade suave, ia atrair esse público, mas não sei se iam ficar curiosos para o número dois. Misturando temas e autores diferentes, acredito ficar mais próximo desse objectivo, deixar os leitores curiosos para o que virá no próximo número, com a certeza de que haverá por lá algum tema que lhes interesse mais e outros que descobrirão. O outro motivo para não haver temas é a liberdade dos autores e a garantia de qualidade. Se eu disser que o próximo número é sobre saúde mental, vou à procura de autores e não posso convidar autores a mais e depois dizer “desculpa, já não há espaço para o teu texto, que demoraste dois meses a escrever”. Ou seja, vou-me condicionar a aceitar o que vier, mesmo que não tenha a qualidade pretendida. Temos imensos exemplos destes em antologias de contos com um tema: convidam-se autores conceituados, eles aceitam, porque o dinheiro faz falta, e depois os textos são todos muito fracos.
O que podemos esperar do próximo número desta revista em formato livro de bolso? A pandemia vai ter visibilidade? Já lhe devem ter sido entregues novas propostas de temas ou mesmo textos já produzidos.
GM: Temos tido muitas submissões e já vai haver pelo menos dois textos que me chegaram assim, através do formulário de submissão do nosso texto. A pandemia vai aparecer, sim, num relato de uma pessoa que esteve doente e, embora sem gravidade, teve de “expulsar” o companheiro de casa, porque era doente oncológico. Vamos falar também sobre o sotaque e os preconceitos que provoca, num texto acutilante de uma autora luso-brasileira. Haverá um texto desafiante e provocador sobre a anorexia. E o resto deixo para descobrirem no início de Abril!
Fizeram uma campanha de assinaturas que teve uma adesão considerável, e apostam numa distribuição apenas em livrarias e online. Que outras fontes de financiamento têm ou esperam conseguir para a revista?
GM: Assim que divulgámos a revista, ainda antes de ela estar impressa, lançámos uma campanha de assinaturas com 20% de desconto, apenas para os primeiros 20 assinantes. Atingimos esses 20 em pouco mais de um dia. Daí para a frente, a assinatura esteve sempre com 10% de desconto. Neste momento temos já mais de 100 assinantes, ou seja, mais de um quinto dos compradores da revista assinaram por um ano. A esmagadora maioria assinou sem nunca ter visto a revista ao vivo. Isto deixou-nos muito felizes, claro, e com a esperança de que haja ainda espaço para crescer, chegar a mais leitores e subir a tiragem. Quanto a formas de financiamento, não temos nenhuma a não ser as vendas e não temos nada no horizonte.
Que lugar espera que a Mamute tenha ocupado dentro de alguns anos?
GM: O lugar, já o ocupámos. Espero é cimentá-lo, ter muito mais leitores e que seja um nome reconhecido pela generalidade das pessoas que se interessam pela leitura, pela cultura, pela política, pela sociedade.